ARTESÃO DA LITERATURA

quinta-feira, 14 de abril de 2016

GUARNIERI: TALENTO E DIGNIDADE - Roberto de Lacerda


Chorei ao saber do desencarne de Flávio Guarnieri! Principalmente pelo fato do excelente ator ter protagonizado um papel maravilhoso na minha vida de homem comum! Flávio, filho de um luminar como foi Gianfrancesco, sofreu muito na carreira artística. Afinal, ser filho de um gênio, geralmente atrapalha a ascenção dos familiares que seguem seus passos, justamente por causa das comparações, inevitáveis, inconsequentes e inconvenientes! Faz uns vinte anos, ele apresentava a bela peça teatral escrita por seu pai, Castro Alves Pede Passagem, no Teatro João Caetano de São Paulo. Como sou ardente admirador do Poeta dos Escravos, e também da família Guarnieri, fui assistir à peça. Acontece que naquele tempo eu gostava muito menos da vida do que gosto hoje, e bebia desbragadamente, vício mórbido que me dominou por mais de trinta sofridos e aflitos anos. Para onde quer que eu fosse lá estava a bebida, suas parcas alegrias e seus fartos transtornos. Comprei o ingresso de antemão e faltando duas horas para o começo do espetáculo, fui a uma cafeteria que funcionava no mesmo quarteirão do teatro. Daquelas casas completas, que não se limitam a vender apenas café, mas produtos de tabacaria, licores, vinhos finos e conhaques! Lugar perfeito!
Comprei dois charutos e fiquei ali sentado numa das mesas redondas, ao estilo francês, fumando cigarros comuns e bebendo licores. Quando faltavam uns quarenta minutos para começar a peça, quem entra no lugar? Flávio Guarnieri. No caixa havia uma bela mulher branca, esguia e de mãos finas e delicadas! Eu já havia reparado nela. Assim que ele se aproximou do caixa, já deu um enorme beijo na boca da moça, que lhe serviu um licor bem vermelho, e eles ficaram ali conversando meio baixinho. Eu que sempre fui um solitário total, fiquei imaginando como seria bom caso fosse um artista, pois também poderia ter na vida aquelas coisas. Quando faltavam uns vinte minutos para começar a peça, ele se despediu, passou pelas mesas e acenou com a cabeça para nós, os fregueses, indo para o teatro. Fiquei ali mais uns dez minutos, paguei a conta à bela mulher, e fui à portaria deixar ali meu bilhete. O detalhe é que não havia sequer vinte pessoas para assistirem à encenação, contando comigo. Flávio ficou sabendo disso antes, nos bastidores, e fez questão de antes de começar, dizer que a atração seria apresentada, como se no teatro estivessem seiscentas pessoas.
Para variar sentei-me na primeira fileira, bem em frente ao palco. Aliás, eu era o único presente sentado na primeira fileira. Flávio, no personagem Castro Alves, estava vestido de terno preto, com sua indefectível gravata borboleta, do modo como o poeta de fato gostava de aparecer em público. A apresentação se desenrolava bem. Havia uma cena que atriz portuguesa, amada de Cecéu, chamada Eugénia Câmara discutiu com ele, e deu dois estalados tapas em seu rosto. Aconteceu que os tapas foram reais, não sei se previamente combinados ou não, e teve até gente que exclamou na plateia, pelo realismo proporcionado. A seguir, o personagem declamou seu máximo poema, O Navio Negreiro. 
Não sei se abalado pelos tabefes, ou apenas eventualmente, Guarnieri errou algumas palavras num verso, no ponto onde havia uma pausa, e eu, fã incondicional, completei em voz alta o verso corretamente. Percebi que as pessoas me olharam, inclusive o grande ator, pois ele sorriu e disse: "muito bem! só as pessoas que amam Castro Alves nos dão a honra da sua presença", e falou o verso corretamente, dando sequência até o final da declamação. Nesse meio tempo, senti uma movimentação na fileira de trás, e dando uma olhada, vi que havia dois funcionários do teatro sentados bem atrás de mim. Sabia que eram funcionários porque me lembrei de um deles que vi no saguão. Certamente que eu não interromperia mais a peça, mesmo que houvesse algum erro de novo! Por isso pedi desculpas a eles e disse que nunca seria essa a minha intenção, e que a minha fala escapou espontaneamente! Eles foram educados e disseram para eu ficar tranquilo, sem problemas, como de fato fiquei!Foi emocionante o desempenho de todos na apresentação.
Ao terminar, fui o que mais aplaudiu, e percebi que Guarnieri me olhava! Quando me levantei para sair, uma das atrizes se aproximou da beira do palco e disse: "Por favor, o Flávio gostaria de falar com você. Você poderia subir um pouco aqui"? Aceitei, e até passou pela minha cabeça que ele poderia chamar minha atenção, por ter interrompido. Mas ao contrário. Quando entrei no camarim, havia uma garrafa térmica azul, com algum café. Ele estava sentado, de cueca diante do toucador. Perguntou se eu queria um cafezinho, aceitei, e ele nos serviu em copos plásticos. Então ele disse que fazia questão de agradecer por saber que ainda existia gente assim, em meio ao público. Pessoas interessadas na arte da representação, e que conheciam aquilo a que se dispunham a assistir! 
Aproveitei e pedi desculpas por ter bebido e que não era meu objetivo estragar a coisa toda! Ele falou que na hora percebeu que não era nada disso que eu queria, e que ele também bebia de vez em quando, sendo aquilo para ele totalmente normal!Saí dali com outra visão do mundo. Fiquei quase que instantaneamente sóbrio. A dignidade humana pode salvar as pessoas. Por causa de um episódio tão simples, interpretado por um profissional tão brilhante, que nem de leve eu poderia imaginar quanto!
A maior lição que ficou para mim foi que a principal dignidade que alguém pode ter, não é aquela que possa abrigar dentro de si, mas a que seja capaz de distribuir entre os outros!
Antes de me despedir eu disse a ele que um dia escreveria sobre aquele acontecimento. Ele sorriu e disse que quando eu o fizesse, levasse para ele ler: Mesmo depois de tantos anos eis aqui, FLÁVIO GUARNIERI: TALENTO E DIGNIDADE! Espero que você goste, e até a próxima vista...



O ARTESÃO AMIGO DESTE TEXTO:




Nasceu aos 21 de abril de 1958 na Capital de São Paulo. Durante algum tempo de sua infância morou no sítio de sua família, no sul de Minas Gerais, com seu pai e seu avô que liam bastante, e acabaram dando a ele o bom gosto da literatura. Alguns anos mais tarde, habituado às constantes consultas a enciclopédias e ao diário conhecimento de clássicos  brasileiros, foi se interessando pela História do Brasil e pela beleza da escrita dos nossos maiores mestres, resolvendo assim, arriscar-se a escrever crônicas  e poemas. Observou em breve tempo as imensas dificuldades da arte, não apenas em nosso país, como em toda a parte, mas mesmo assim prosseguiu sua jornada de letras, sonhos e realizações pessoais, em função da fé em suas verdades. 



2 comentários:

  1. Sempre grato ao excelente Blog pela deferência.Um trabalho de semelhante nível somente confirma que o gosto sutil e o refinado trato da arte ainda existem no Brasil, mesmo que muitos não queiram!

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  2. Esse toque intimista ,realista e romanceado me faz um bem danado. Adoro seus textos,Roberto de Lacerda. A gente se encaixa neles e há sempre presente um clima de simpatia e atratividade com a cênica narrativa.

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